Meninas Frôs, Mulheres Borboletas, Fadas Dançarinas....
Este texto é aquele que comentei no Ventre de Vênus, na vivência da Michele Doula....
RAÍZES:
Morocco New York - USA 1973
“Quando comecei com a Dança Oriental (no tempo em que Noé saiu da Arca) fui atraída pela beleza de sua música e de seus movimentos, e não imaginei que ela poderia ser mal interpretada por pessoas ignorantes e mal informadas. Na minha inocência, acreditava que a graça de uma talentosa bailarina era suficiente para provar a beleza e a legitimidade desta antiga forma de arte. Como eu estava errada! Perdi a conta de quantas vezes minha moral e valor foram julgados baseados neste nome vulgar “belly” dancing (dança do “ventre”) e em apresentações anteriores de pessoas que, como em toda profissão, levam a um baixo denominador comum. Foi então que iniciei uma séria pesquisa histórica com o intuito de evitar as besteiras fantasiosas que estavam sendo publicadas, filmadas, apresentadas e acreditadas pelos Estados Unidos, parte do Canadá e Europa…
Fiquei impressionada com o fato de que a maioria das informações em inglês, francês e alemão eram dadas por dois tipos de pessoas: racistas de mentes sujas, incluindo os puritanos missionários colonizadores que baixavam o olhar a tudo que dissesse respeito a tradições de outros povos, suas cerimônias e divertimentos. Julgavam tudo sob uma ótica esnobe tipicamente européia, que considerava o corpo como algo pecaminoso e a valsa como erótica e depravada – e – aqueles que eu chamo de “antropologistas de prostíbulo”: homens jovens (e não tão jovens) que viajavam ao Oriente Médio como parte de sua “educação” e escreviam sobre isso por dinheiro, sensacionalismo ou por causa de pais castradores. Não encontrei nenhum caso em que algum desses HOMENS tenha tido a oportunidade de participar do dia-a-dia de uma família ou mesmo de uma tribo, de maneira a verem os rituais de mulheres de família em suas próprias casas. Mesmo que tivessem amigos homens na comunidade islâmica o acesso às mulheres lhes seria negado.
Sem mencionar o fato de que as tradições de muitos países orientais foram abandonadas em prol das necessidades ecônomicas das grande cidades onde europeus iam buscar seus parceiros de negócios, e por burocaratas desses países ansiosos por obter favores de seus opressores denegrindo, abandonando e caluniando suas raízes e tradições nativas.)
A suspeita de que havia uma ligação entre os movimentos de ondulação da dança oriental e o ato de dar à luz veio de repente em Fevereiro de 1961 quando, ao terminar uma apresentação de dança no Arabian Nights na cidade de Nova York, fui abordada por uma mulher saudita, Farab Firdoz, que se recusava a acreditar que eu não fosse árabe pois, segundo ela eu dançava de maneira autêntica. Ela era dançarina e aprendeu com a mãe e a avó que também foram dançarinas. Ela me falou que o “belly roll” (ondulações de ventre), as vibrações de ventre e alguns movimentos de chão eram baseados em movimentos do trabalho de parto e que milhares de anos atrás, faziam parte de cerimônias religiosas. Com o advento do monoteísmo e outras restrições religiosas, essas cerimônias perderam o caráter religioso e passaram a ser praticadas livremente como entretenimento (em platéias exclusivamente feminina ou misturadas), de forma ritualística/terapêutica. Em áreas remotas do oriente onde os costumes ocidentais ainda não penetraram, as mulheres da tribo se juntam em torno da mulher em trabalho de parto e fazem certos movimentos com seus ventres encorajando-a a fazer o mesmo, de forma a facilitar o parto e lembrar que cada uma delas divide o mesmo destino e as mesmas experiências como mulher. Praticando esses movimentos em várias danças folclóricas desde a infância, seus músculos abdominais são fortes e melhores preparados para o stress do parto.
Claro que ela não me contou tudo isso logo no primeiro momento quando me abordou no camarim, isso veio após algumas semanas de amizade e minhas táticas de interrogação. Para falar a verdade, eu acho que ela já estava cansada desse assunto. Então duas mulheres sefaradis mencionaram um curso LaMaze (método para o parto sem dor) no qual os principais movimentos ensinados eram as ondulações e os tremidos de ventre ali chamados de “rotação da pélvis” e “respiração cachorrinho” (termo usado no Brasil), o que provocou risos entre elas. Procurei checar essas aulas LaMaze com um casal no Hospital Mount Sinai e descobri que elas estavam certas. Minha curiosidade aumentou, mas ainda não estava convencida.
Em 1962, numa livraria em Londres encontrei “A Dançarina de Shamahka” (The Dancer of Shamaka) de Armen Ohanian e a passagem que citei em meu artigo de 1964, “A Dança do Ventre e o Parto” (Belly Dancing and Childbirth) assim como o resto do livro que, forneceu informações sobre datas e contextos culturais de onde foi escrito. Eu não acreditei em tudo o que o livro dizia, questionei novamente minha amiga saudita e ela me falou que recentemente, coisa de 25 anos atrás (1937), ela estava presente quando um grupo de mulheres da tribo de sua mãe juntaram-se ao redor da cama de uma mulher em trabalho de parto fazendo esses mesmos movimentos, inclusive ela própria. Depois foram feitas outras danças para celebrarem o nascimento, inclusive uma repetição mais elaborada da dança o parto. Homens eram proibidos de assistir a nascimentos ou a celebrações de mulheres, eles tinham suas próprias danças e celebrações para eventos dos quais as mulheres, igualmente, não participavam. Comecei a acreditar.
Em 1963, o Pavilhão de Marrocos na Feira Mundial de Nova York abriu e eu estava lá no primeiro dia para o primeiro show. Fiquei para mais quatro. Os diretores/promotores do pavilhão, os quais eu já conhecia (isso é outra história!) perceberam meu interesse (por que será?). Eles estavam surpresos e contentes com a minha seriedade a respeito da dança e da cultura árabe e então passaram a me dar informações (e comida também, muita!). Em uma dessas conversas, um deles disse que sua esposa estava voltando ao Marrocos, para a cidade de seus primos, e que uma delas estava para ter bebê pela primeira vez e que ela estava indo para ajudar a “dançar o bebê ao mundo”. O quê ? E ele repetiu a mesma história que Farab havia me dito dois anos antes. Primeiro a mulher saudita e agora um marroquino com a mesma história. A esposa dele não era dançarina profissional, ela era uma rica dona de casa que não negava suas raízes vinda de uma tribo Berber, ainda não afetada pela cultura ocidental. Eu disse a ele que daria metade da minha alma para poder presenciar uma cerimônia como essa e ele prometeu ajudar.
Em 1964 eu escrevi o artigo mencionado anteriormente o qual foi publicado numa revista médica especializada. Esse artigo foi reimpresso em outras cinco publicações, de jornais feministas e publicações sobre dança a Medical Dimensions de 1974 (revista médica). O número de abril de 1961 da revista Dance Perspectives mostrava que La Meri, a respeitável dançarina e etnóloga usou a mesma passagem de A Dançarina de Shamahka para ilustrar seu artigo. Mundo pequeno não?
A essas alturas, pensei que meu amigo marroquino tinha esquecido sua promessa mas em 1967 recebi notícias de Casablanca: “venha para cá imediatamente, se ainda quiser ver o que me pediu”. Outra prima estava para dar à luz e pelo tamanho, deviam ser gêmeos. Sem perguntas apanhei meu passaporte, emprestei um dinheiro de minha mãe (obrigada mãe!) e voei para Casablanca. (Pensando bem não lhe devolvi o dinheiro ainda. Ela também não tocou no assunto.) A esposa do marroquino me esperava no aeroporto e foi me explicando a situação no caminho para a pequena cidade, um lugar entre Tisint e Tintasart (nada que se pudesse chamar de cidades turísticas!).
Já que nem podia imaginar como se falava Berber, nem árabe (falávamos em francês e espanhol), mas passava facilmente como marroquina, eu deveria fingir que era surda e muda e seria apresentada como uma serva da esposa de meu amigo. Qualquer um que me conheça sabe o esforço que é para eu manter a boca calada por cinco minutos, imagine por dias… Ela me explicou sobre o que aconteceria de forma a não ser pega de surpresa numa reação que poderia arruinar o meu disfarce. Eu deveria começar a representar meu papel imediatamente pois iríamos apanhar outros parentes no caminho que não deveriam saber de nada. Claro que tivemos que ficar algumas horas na casa de cada parente, comer, etc. Perdi alguns quilinhos extras já que as servas só comiam os restos.
Minha “senhora” me levou a várias festas de família, sempre justificando que eu era nova em sua casa e tinha sido praticamente adotada por ela já que eu era tão jovem e terrivelmente atormentada por Alá. (Quando a questionei por mentir sob o nome de Deus ela me disse que o meu “tormento” era não ser realmente marroquina!) Ouvi muita música e vi bastante Schikhatt (dança folclórica), até dancei junto com outras servas após o trabalho, elas têm suas próprias festas Schikhatt. Foram 3 longos, quentes e cansativos dias e noites de paradas em casas de parentes até finalmente chegarmos a pequena cidade. Assim que chegamos fomos direto para o hamman local (banhos a vapor). Alá seja louvado!
Uma tenda especial foi armada para onde a prima foi levada no dia anterior após ser banhada por amigas no hamman. Seu marido era um grande mogul (pessoa muito importante) na tribo e muitos festejos acompanharam o evento. Ela estava sentada numa espécie de divã (sofá baixo) na parte de trás da tenda e eu notei um buraco no chão bem no centro. Tinha bastante comida, frutas e chá de hortelã para as convidadas. Os homens deviam ficar a uma distância de 100 jardas da tenda. Não se sabia exatamente o dia do parto mas sabia-se que estava perto. Mais parentes eram esperados e havia comida para alimentar um exército. Passamos o dia cantando, tocando bendirs (instrumento típico marroquino) , dançando Schikhatt, tomando chá de hortelã (que eu servia a minha “senhora” de maneira razoável!) e comendo. Ah, sim – a grávida levantou-se e dançou boa parte do dia, vestida com uma bela kaftan (tipo de vestido) bordada.
Mais tarde, à noite quando eu estava sozinha com minha benfeitora perguntei sobre o buraco no chão. Ela disse que era para o bebê no momento do nascimento. Hum? Espere e verá… Na manhã seguinte fomos acordadas por uma das servas da prima: o trabalho de parto começara. Pulamos da cama (dos divãs), nos vestimos e corremos feito loucas. A grávida vestia uma kaftan mais leve e estava acocorada em cima do buraco, suando em bicas. As outras mulheres formaram uma série de círculos, dos quais três eram próximos a ela. Pudemos fazer parte do primeiro círculo. Todas as mulheres cantavam e ondulavam seus abdomens, ás vezes contraindo fortemente. Os movimentos eram bem mais lentos e fortes do que os chamados tremidos de ventre e que podem ser vistos em danças Schikhatt. Elas repetiam os movimentos enquanto giravam os círculos lentamente, no sentido horário. Por vezes a prima levantava-se e fazia os movimentos no lugar para depois abaixar-se de novo. Ela não parecia agitada nem com dor, seus cabelos e sua testa molhados de suor eram o sinal de seu esforço.
Parávamos somente para as preces do dia. Graças a Deus sou uma dançarina e pude imitar os movimentos do ritual islâmico como se estivesse imitando uma dança, ou tudo teria ido por água abaixo naquele momento. Bebemos chá de hortelã servido a todos e continuamos a dançar. Mais ou menos uma hora depois ela soltou um grito abafado e ouvimos um barulho seco. Ela levantou sua kaftan e vimos um bebê no buraco. Mas ainda não havia terminado, quinze minutos depois outro grito e outro barulho seco. Eram gêmeos. Eles foram limpos com panos macios feitos com lã de carneiro umedecidos com chá fresco, mas os cordões umbilicais só foram cortados após a saída da placenta. Eles foram cortados com uma faca de prata e a placenta enterrada no mesmo buraco que recebera os recém-nascidos.
As mulheres começaram a cantar feito loucas (lílílí), os bebês começaram a chorar (quem não choraria com todo aquele barulho) e a julgar pelos gritos vindos de fora os homens perceberam o acontecido e já levavam a boa nova para o outro lado da cidade onde estava o pai esperando com amigos. Quinze minutos depois, ele parou a exatas 100 jardas da tenda e os bebês foram levados até ele envoltos em tecido branco. Depois levados de volta para mãe, que já descansava, para serem amamentados. As mulheres continuaram cantando e dançando até depois do pôr do sol. Foi tão emocionante que não consegui conter o choro.
Enquanto assistia ela dando à luz, pude perceber seu ventre por baixo da kaftan em contrações involuntárias igualzinho as gatas quando estão parindo. Mais tarde perguntei a minha “senhora” se ela também estava dançando ou se eram movimentos naturais e ela disse: “Nós fizemos uma imitação dos movimentos naturais. Ela tinha que fazer esses movimentos quando dava à luz porque não podia ser de outra maneira.” Em outras palavras, aqueles eram movimentos naturais do trabalho de parto que foram “apagados” de nossos cérebros por propagandas religiosas e manobras médicas.
Isso foi mais do que suficiente para provar a origem de alguns dos movimentos incorporados a Dança Oriental e dar crédito as alegações de Armen Ohanian, de que essa dança sagrada foi degradada e distorcida.
De forma alguma isso pode significar que quando danço finjo estar parindo. Yuk! Significa sim, que sei a origem, a intenção, o respeito e o amor pela vida que a dança deve mostrar. Ela deve ser graciosa, bonita, artística, sincera e não um show vulgar para entreter homens.
Não me desculpo a ninguém pela minha arte, agradeço a Deus por isso, pela minha habilidade em fazê-lo e por ganhar o meu sustento fazendo algo que gosto. Não tenho nenhum respeito por alguns infelizes que usam a dança para projetar suas degeneradas fantasias sexuais, pois não têm confiança em sua própria sexualidade.
Toda dança tem suas raízes em algum tipo de cerimônia religiosa, algumas delas deliberadamente erótica, assim como um discurso tem sua origem nos grunidos dos homens das cavernas. Toda forma de dança, bem feita (assim como esporte, ginástica, etc.) é agradável aos olhos e pode ser sensual. Infelizmente, existem os ignorantes que acham qualquer movimento um pouco mais trabalhado do corpo humano indecente e lascivo. Isso é um problema deles, mas é difícil trabalhar como uma verdadeira bailarina oriental e etnóloga sem ter que lidar com essas mentes doentes e suas interpretações vulgares.
Usar esse nome horroroso “belly dance” não é apenas incorreto mas um insulto equivalente a chamar o Flamenco de “Dança de Matar Baratas”. Em árabe a dança é chamada de “Raks Sharki” ou “Raks al Shark” que se traduz como “Dança Oriental” ou “Dança do Oriente”. Em lugares no Oriente Médio é também conhecida como “Danse Orientale”. O termo “belly dance” foi criado em 1893 por Sol Bloom, empresário da Midway Plaisance & “Street in Cairo” exibido na Colombian Trade Fair and Exposition in Chicago (Feira Mundial de Chicago), EUA. Ele deu este nome de forma deliberada para atiçar as mentes sujas da era vitoriana, que pagariam qualquer preço para ver algo que eles considerassem obsceno e então fingirem-se chocados. Num tempo em que as palavras “braço” e “perna” eram indecorosas (eram chamadas membros), você pode imaginar o que eles fizeram disso. O Sr. Bloom calculou corretamente e ganhou tanto dinheiro que pode financiar sua candidatura ao congresso, ao qual foi eleito. Infelizmente o nome ficou, assim como o julgamento irracional, especialmente quando há criaturas que nivelam por baixo no intuito de ganhar dinheiro fácil.
Felizmente, existem bailarinas que respeitam a si mesma e a arte da dança. Há também o povo oriental que não sucumbiu a distorção e degradação colonialista de sua herança étnica. São pessoas que conhecem arte quando vêem. A eles o meu muito obrigado e podem se alegrar por eu ser uma dançarina oriental. Pois certamente, eu sou.”
Traduzido por Claudia Offner.
Sobre a Morocco:
Carolina Vargas Dinicu, é dançarina, pesquisadora e etnóloga, atua a mais de 40 anos com danças femininas orientais, buscando sempre a origens e a sacralidade de cada dança.
Atua em Nova York com sua companhia de Dança Casbah.
www. casbahdance. org
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