Sou mulher e não conheço a minha história.
Não tenho identidade.
Sou pedaço de Adão (Gn 2,22).
Sou auxiliar, complemento, companheira (Gn 2,18).
Sou controlada, subjugada, submissa.
Sou dote. Esposa meiga, dócil, obediente...
Sou santa, sedutora, prostituta.
Sou mãe e amante.
Sou admirada e sou temida.
Sou víbora mansa ou feroz.
Sou doce ou atroz!
... Sou mulher.
Relegada a “ser menor”, a “ser menos”...
Minha altivez, dignidade, igualdade, força, ousadia
e soberania foi-me roubada, usurpada?!...
Preciso entender como e por quê.
E resgatar minha história,
resgatar minha identidade para
refazer-me
reconstruir-me
reconhecer-me
reencontrar-me
revalorizar-me
e renascer mulher!
A história que conheço é aquela que durante séculos silenciou e continua silenciando e ferindo o corpo das mulheres. Mulheres anônimas, conhecidas apenas como: “esposa de...:, “mãe de...” , “irmã de...” , “filha de...” , ou então, “aquela mulher...” , “aquela professora...” , a “tia...”
Há quem ouse dizer que essa submissão e dependência da mulher é “coisa do passado”. Sei que muitas mulheres já conquistaram seu espaço e, autônomas, assumem seu papel na sociedade e são independentes. Impossível é estender essa autonomia e independência à todas as mulheres!
São tantas as mulheres desconhecidas, esquecidas, ignoradas na linguagem do patriarcado androcêntrico! São tantas as mulheres tratadas como pessoas sobre as quais se decide sem consultar! Suas oportunidades na vida se limitam a ser mãe, esposa, cozinheira, faxineira, lavadeira...
Mulheres como a Lita, a Neca, a Terezinha..., que trabalham de manhã à noite na roça e ainda cuidam da casa, do marido e dos filhos e quando precisam do dinheiro têm que pedir, justificar...
Mulheres como a Cristina que mesmo sentindo-se doente “tinha que cuidar do marido”. Quando foi ao médico era tarde. O câncer já lhe havia tomado o seio e criado raízes...
Mulheres como a “tia Nega” que, de tanto apanhar do marido e dos filhos começou a beber e chora e diz que está cansada desta vida...
Mulheres como a minha mãe, Verônica, que criou dez filhos e não teve tempo de aprender a bordar, pintar, dançar, fazer tricô ou crochê. Hoje, aos 79 anos enfrenta sério problema de depressão, pois não tem mais filhos para criar, educar... E não sabe fazer outra coisa. A vida inteira foi mãe e esposa!
Mulheres como a Jacira, que conseguiu escapar das “mãos de macho” do marido que quase a estrangulou e hoje, sozinha, cria três filhos adolescentes!
Mulheres como a Guiomar que cuidou do marido alcoólatra, até este morrer de sérias complicações por causa do álcool...
Esta é a realidade das mulheres da minha comunidade. Uma comunidade de mulheres agricultoras. Não conheceram outras alternativas. Pouquíssimas tiveram a oportunidade de estudar... “As filhas mulheres não precisam estudar, pois sua obrigação é cuidar, zelar pelo bem estar da casa, do marido e dos filhos”, diziam os mais velhos.
São tantas as mulheres que não conhecem suas possibilidades! Nem seus valores! Adotam inconscientemente atitudes de menor. Têm temores infantis de serem abandonadas, espancadas. Têm medo de ficar desprotegida, sem apoio. Sentem-se mais fracas e aceitam como fatalismo os castigos físicos impostos pelo marido. Sua realização pessoal limita-se em ter filhos.
A maternidade muitas vezes é fruto da violência, da promiscuidade ou do álcool. Não obstante, até mesmo em condições desumanas, a maternidade continua sendo fundamental para a autovalorização da mulher! “... ela será salva pela sua maternidade...” (1Tm 2,15).
Cabe à mulher, portanto, a tarefa de zelar, cuidar, criar, educar. Responsabilizar-se pelo total e completo bem estar do marido e dos filhos. Ela “deve” compreender que esta relação de família está acima de suas vontades, sonhos, desejos, querer, ambições profissionais...
A mulher é vista e lembrada à luz do patriarcado: “... aprendam a amar os seus maridos e filhos, a ser ajuizadas, fiéis e submissas a seu esposo, boas donas de casa, amáveis...” (Tt 2, 3-5).
Também Maria, a Mãe de Deus, é interpretada segundo os critérios masculinos do patriarcado androcêntrico. Sua figura é a figura da mulher silenciosa, absorta em Deus que se pôs a escutar, obedecer, ser prestativa, colaboradora, casta, pura, inocente...
Maria é valorizada porque soube ser serva, escrava. Soube dizer Sim (Lc 1,39). Teve preocupação de Mãe ao perceber a ausência do Filho quando voltavam de uma romaria ao Templo (Lc 2,48).
O homem privilegiou essas “virtudes” em Maria e por extensão a todas as mulheres.
Maria é carregada em andores, pálida e passiva. Sempre calada. Muda. Como a mãe que suporta tudo e todo tipo de opressão e exploração.
Como “modelo de mulher”, Maria é obediente, prestativa, dócil, carinhosa, meiga, feminina...
Não poderia ser diferente numa sociedade que tinha (e tem!) o homem como centro e a mulher como sua propriedade.
Hoje, ainda, a Igreja ao fazer uso da Palavra, numa interpretação à luz do patriarcado, reforça e consolida a opressão à mulher. Assim é, quando ao falar de Maria, esta é apresentada como modelo de mulher pronta para dizer sempre sim. Casta, pura, inocente, obediente, humilde, prestativa... Mulher resignada que aceita tudo sem contestar, sem questionar. Mulher que nada pede. Nada quer, nada deseja...
É possível, portanto, entender, quando nos deparamos em pleno século XXI com mulheres submissas, dependentes, cabisbaixas, apenas cumpridoras de seu papel de mãe e esposa!
Porém, o custo que temos que pagar para manter essa supremacia masculina é muito grande. O fardo é pesado. Nossos corpos estão machucados. Nossas mãos, calejadas. Nossa pele, ferida...
É comum saber de mulheres que querem escapar desse jugo e são mortas, assassinadas, perseguidas... Essa supremacia é mantida numa relação de força e poder. E, para mantê-la, mata-se se for preciso.
Mas nem sempre a história foi construída à luz do patriarcado. Houve um tempo em que...
... A grande mãe
Sabemos, por exemplo, que o primeiro elemento cultuado pela humanidade foi a Terra. Chamada de Terra Mãe era considerada a divindade da fertilidade.
A evolução vai transformar a Terra Mãe em Deusa Mãe. E com o passar do tempo não foi difícil associar a fertilidade e a fecundidade da Terra à Mulher. Ambas eram capazes de gerar Vida. A procriação transfere respeito e admiração à mulher.
O culto à mulher desenvolve-se prodigiosamente. Ela passa a ser a Senhora da Vida, a Magna Mater, a Deusa Mãe, a Grande Deusa Soberana... Reina em equilíbrio com outros deuses e deusas. Como ser frágil e delicada jamais aparece. A deusa e o deus são imagens equivalentes do divino. São a expressão da soberania e do poder divinos, em forma de mulher e de homem.
A mulher/mãe criadora e geradora de vida desempenhou um papel extremamente importante na história das religiões. Ela foi a primeira divindade conhecida, a mais antiga.
O culto à Grande Deusa Mãe se estendeu por muitos e muitos séculos. Podemos dizer que se manteve presente no judaísmo chegando até o cristianismo.
A história nos mostra, portanto, que o primeiro culto foi oferecido a uma Deusa. A Deusa Mãe ocupa seu lugar de soberana divina e o princípio materno exerce poder sobre os povos por muitos e muitos séculos como vimos. Ela é promotora, doadora da vida e de vida!
Mas um dia...
... A grande deusa mãe é ameaçada!
Por volta do ano 3000 aC, mais ou menos, o ser humano se organiza de forma diferente. O homem deixa de ser nômade e se sedentariza. Assume seu espaço. Delimita seus limites. Finca suas raízes. Domestica os animais. Começa a cultivar o solo. Mais ou menos no ano 700 aC o homem inventa o arado e com ele fere, rasga a terra e nela introduz a semente.
Com a domesticação dos animais o homem descobre que a fêmea animal não gera sozinha. E se a fêmea animal não gera sozinha, também a fêmea humana não gera sozinha. Conclui, então, que tanto a fêmea humana quanto a terra funcionam como receptáculo do grão que lhes é introduzido.
Esta descoberta pode ter sido a causadora da mudança de atitude do homem em relação à mulher. Da mulher foi retirado o cetro e a coroa de ser mágico e divino. A mulher perde todo o seu prestígio. A partir daí tudo contribui para o declínio do poder feminino e para uma ascensão do que vem a se denominar o patriarcado.
A situação da mulher mudou bruscamente até ser submetida à supremacia masculina.
Esta supremacia masculina imposta às mulheres configura-se como definidora e definitiva para o surgimento de um Deus Único que, fortalecido pela Monarquia, vai constituir-se num Deus Guerreiro, Senhor dos Exércitos, Todo Poderoso. Guerras e idolatria o transformam num Deus irado, vingativo, capaz de passar a fio de espada lactentes, jovens, adultos e idosos (Jr 44,2- 14). Um Deus vulnerável diante da impureza, defendendo-se matando o impuro. Um Deus que impõe sua Lei sem admitir transgressões, ciumento que era de sua soberania. O patriarcado cria corpo. O Deus Único se impõe como Senhor Absoluto de tudo o que existe.
O Templo, lugar de unificação passa a ser lugar de segregação. De casa de Deus passa a ser a casa do Rei. O Rei é o mediador necessário entre Deus e os homens. Mais tarde esse poder de mediar passa para as mãos dos sacerdotes que criaram normas, leis, estratificando ainda mais a sociedade e criando uma barreira enorme nas relações humanas e divinas. Formaram uma estrutura sócio-religiosa-hierárquica exclusiva e excludente. Criaram fortes mecanismos para manter a separação e o privilégio. Inventaram a lei do puro e impuro, sagrado e profano...
Porém o projeto do Deus Único não consegue extirpar de vez a imagem da Deusa. A Grande Deusa Mãe se mantém viva no imaginário popular, no inconsciente coletivo. Está apenas ocultada, adormecida... E renasce quando o verbo se faz carne no corpo da Mãe. E o Verbo era Deus (Jo 1,1)...
... E o sonho renasce!
O Verbo se faz carne no corpo da Mãe! E o Verbo era Deus! ... Então Deus é gerado pela Mãe, a Grande Mãe! O Verbo se faz carne no corpo da mulher e sem a participação do homem! Como quem reage a um sistema que fere a humanidade. O patriarcado fere a humanidade. Fere o corpo da mulher e do homem.
E Jesus, o Verbo encarnado, o Deus Conosco, entra na história num tempo em que as mulheres eram extremamente discriminadas, marginalizadas, excluídas pela sociedade patriarcal e androcêntrica. O homem via na mulher um ser profano. Impura simplesmente por ser mulher! Culpa essa que lhe foi outorgada à revelia e que a tornava inferior.
Mas Jesus, o Verbo encarnado nasce no corpo da Grande Mãe/Mulher. E nasce a esperança. E nasce o sonho de igualdade!
O imaginário popular que retém em seu inconsciente coletivo a imagem da Deusa Mãe resgata em Maria, a Mãe do Salvador, a Grande Deusa Mãe. Busca em Maria preencher o vazio deixado pela proibição de se cultuar a Grande Mãe.
E é a luz do corpo de mulher que busco em Maria, no pouco de sua história que chegou até nós, descobrir essa insistência, essa persistência em manter vivo o sonho de construir um mundo de igualdade, sem exclusão, onde crianças e mulheres cantam e encantam, onde jovens acreditam no futuro e os pais sejam também mães e juntos possam passar aos filhos e filhas a alegria de viver. Viver plena e abundantemente!
Sei que esse sonho não é exclusividade de mulheres. Dele faz parte homens que dispensam o critério de “macho” e sabem deixar sua centralidade e poder de lado e, a exemplo de Jesus, procuram construir o Reino onde a Vida está acima de tudo. Dele fazem parte todos os homens que procuram não se enquadrar na imagem tradicional do homem: seguro, frio, corajoso, bem sucedido, agressivo e provedor, mas que sua coragem se encontre no fato de reconhecer sua fragilidade e sensibilidade. De ser capaz de amar. Amar plenamente. Quem ama plenamente promove Vida em abundância.
Relendo o texto de Jo 2,1-12
A mãe/mulher e o filho/homem mostram o que é o Reino!
Em Jo 2,1-12, temos o convite para nos colocar de pé. Pôr-se a caminho. Resistir à toda violência, à toda opressão. Temos o convite para Vida... Para promover Vida, gerar Vida!
Maria e Jesus estavam numa festa de casamento. O noivo não tem nome. A noiva não é citada. Os demais personagens são: os discípulos, o mestre-sala, os serventes... Mas, Maria estava lá! É ela que, atenta, percebe que há algo errado. E denuncia: “eles não têm mais vinho!” (Jo 2,3). O que significa faltar vinho?
Perguntando a Taty, 17 anos, ela diz: “meu pai faz vinho pra nós. Todos os dias ao meio-dia nós tomamos vinho. Vinho é saúde. É alegria. É festa. É esperança. Vinho faz bem pro coração, pra alma, pro corpo. Tira o cansaço. Dá sono.”
“... Eles e elas não têm mais vinho!”
Tia Aurora quando toma uma taça de vinho “esquece todas as tristezas”. Mulher sofrida. Abatida pelas intempéries e incertezas da vida, começa a rir já no primeiro gole. E ri. E conta histórias. Resgata a alegria...
“... Eles e elas não têm mais vinho!”
Cleusa e Cleir quando chegam em casa, cansadas da lida, e ainda precisam fazer a comida, lavar, passar... Gostam de tomar um pouquinho de vinho. Devolve-lhes as forças. Tira-lhes a rigidez do corpo. Têm vontade de cantar...
“... Eles e elas não têm mais vinho!”
Senhora Sagrada da Festa
Divina Virgem do Riso
Mãe dos corpos e dos Bailes
Chama teu Filho
apressa o milagre
abre as torneiras do riso da gente
Afrouxa o sorriso dos filhos do povo
acende a cintura das filhas da aldeia
re-inventa o milagre
multiplica a fartura
deusa da alegria e do vinho...
(Nancy Cardoso Pereira)
Maria apressa o milagre. Provoca Jesus e o incita a tomar uma atitude. Conhecedora de seus próprios poderes e de seu domínio manifesta sua autoridade. Tem pressa em devolver a alegria, a esperança, à fartura, o canto, o riso, o encanto ao povo sofrido cansado e abatido.
Devolve a esperança, a confiança num mundo melhor, onde a Vida seja respeitada, promovida...
Maria tem autonomia. Age sem pedir licença. Não espera ser autorizada. Autoriza: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). O Filho, sabedor de seus poderes compactua com ela e diz: “Enchei as talhas de água” (Jo 2,7). O perfeito casamento sagrado: Mãe e Filho unidos e unindo-se para assegurar a dignidade, a alegria, o bem estar, o direito a Vida Plena!
O sentido fatalista da “ordem das coisas” culturalmente imutáveis é quebrado. Derruba-se a muralha que oprime e exclui.
Em Maria, resgata-se e dá-se dignidade a todas as mulheres. Não são mais conhecidas e reconhecidas como “mãe de...”, “esposa de...”, “filha de...” São mulheres!
A mulher só pode ser mãe porque é mulher. Antes de ser esposa, filha, irmã, médica, professora, etc. a mulher é mulher! E como tal é reconhecida por Jesus: “Mulher, que tenho eu contigo? Minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4).
Jesus a exorta a desinteressar-se do caso. Mas não é possível continuar vivendo numa sociedade excludente, opressora e machista. Atuam juntos, quebrando leis e preconceitos da época. Jesus não descansa no sábado (dia sagrado para os judeus) e faz o milagre acontecer. Dirige-se a Maria não como mãe, mas como Mulher! Maria, também, não espera a hora. “...Esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” (G. Vandré) A hora é agora. É já!
“Tu guardaste o vinho bom até agora...” (Jo 2,10). Para quê economizar alegria? Para quê economizar esperança?Jesus e Maria esbanjam vinho!
“Havia aí 6 potes de pedra de uns 100 litros cada um” (Jo 2,6). São mais ou menos 600 litros de vinho! É o bastante para aquele povo embebedar-se de alegria, de esperança, de festa, de riso, de “comilança” (sempre tem muita comida nas festas de casamento). Mata-se a fome de todo mundo!
É para todas e todos esbanjar com fartura e desfrutar de forma prazerosa da Vida Plena em abundância. É para todos e todas se afogarem no vinho da liberdade – as talhas de pedra “serviam para a purificação dos judeus” (Jo 2,6). Fora a impureza! O pecado! A culpa! E viva a liberdade!
Maria e Jesus devolvem o gosto de viver, a embriaguez dos corpos felizes, o torpor do sono depois do amor!...
Maria não aceita instalar-se. Derruba o status quo. Compromete-se com a Vida em Liberdade e com igualdade. Quebra a ideologia machista que afirma ser a mulher pertença de alguém. Acaba com o princípio da receptividade passiva das mulheres. É ousada. Corajosa. Atrevida. Toma iniciativa. Coordena. Comanda. Não pede licença aos donos da festa...
Essa atuação de Maria em igualdade de condições com Jesus é uma amostra grátis do que é o Reino!
As festas de casamento sempre reúnem muita gente. Ali se encontravam judeus, galileus, samaritanos e helenistas. A comunidade do discípulo amado era aberta e acolhedora. Respeitava o ser de cada um. Acolhia os diferentes. Trabalhava os conflitos numa perspectiva de inclusão, de respeito mútuo.
Nela, a mulher tem respeito e dignidade pelo fato de ser mulher. A partir do reconhecimento da dignidade de Maria como mulher, o prazer e a alegria voltam ao corpo de todas as mulheres. A Lei do Templo, machista e massacrante, é contestada publicamente quando a água que servia para a purificação dos judeus é transformada em vinho para festa e alegria do povo!
No Evangelho da comunidade do discipulado de iguais as mulheres estavam inseridas no projeto que expressava o grande sonho de Jesus: vida em abundância (Jo 10,10). E Maria apressa o milagre. Faz o sonho acontecer no corpo de todas as mulheres. Estas se vêem inseridas no Projeto, não como componentes acidentais, mas como participantes ativas, isentas de qualquer preconceito, de todo e qualquer tipo de discriminação.
Em Maria, a mulher não se curva ao domínio do patriarcado. Em Maria afirma-se, como manifestação do imaginário popular, o culto à Mãe. O povo não se conformava em excluí-la de seu posto. E resgatam, em Maria, a imagem da Grande Mãe, a Soberana.
Maria não se apresenta em Jo 2,1-12 como mãe ciosamente dobrada sobre o Filho divino, mas como a Grande Mãe que com sua ação favorece, fortalece e consolida a fé da comunidade.
Procuro despir-me do que aprendi
Procuro esquecer-me do modo de lembrar
que me ensinaram
e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu
(Alberto Caieiro-citado por Rubem Alves)]
... É preciso raspar a tinta da cultura patriarcal. Esquecer as palavras ideológicas e machistas usadas para trazer até nós a imagem de Maria. Palavras que grudaram em nosso corpo, na nossa pele. Feriram nossos pés. E nos fazem mal. Nos sufocam. Não conseguimos respirar intoxicadas pelo cheiro da tinta da apatia, da mudez, da passividade... Nosso corpo está coberto pelas tatuagens que só interessam a quem quer continuar conservando Maria impassível, indiferente. Adorada nos altares, mas ausente da realidade vivida por todos os seus filhos e filhas.
Rubem Alves diz que o “mundo de fora é um mercado onde pássaros engaiolados são vendidos e comprados. As pessoas pensam que, se comprarem o pássaro certo, terão alegria. Mas pássaros engaiolados, por mais belos que sejam, não podem dar alegria.”
Hoje, a Igreja, a qual eu pertenço, parece-me, um mercado que procura vender uma imagem de Maria engaiolada. Ela não é ela mesma. Calaram sua voz. Pouco falaram dela. Pouco disseram do que fez. Não canta. Não anda. Não dança. Não se enfeita para o amor. Não vai ao encontro do amado. Só chora “lágrimas de sangue”, sem, no entanto, modificar as feições de seu rosto. Não acompanha o ciclo da vida, está sempre jovem, bela, sem rugas. Olhar sempre terno e distante, na maioria das vezes triste e ausente. Coberta. Muito coberta. A ponta dos pés aparece na barra do vestido! Magra. Muito magra! Um holofote a ilumina sempre. Desejos? Se os tem são inconfessáveis! Mãos estendidas sugerindo acolhimento. Refém adorada!
Destino ou caminho preparado? Fruto de uma ideologia que privilegia o masculino em detrimento do feminino! Modelo de mulher impossível: sexualmente sempre pura, virgem e mãe ao mesmo tempo. Figura simbólica! Num corpo engaiolado não pode haver alegria!
Como se pretende sonhar com uma igreja alegre? Nós, mulheres, nem sempre podemos ser nós mesmas. Se assumimos alguma função na Igreja, temos que fazer segundo os padrões determinados pelos homens que impõem as leis da Igreja. Enquanto nós mulheres continuarmos desempenhando funções de liderança na igreja de acordo com os padrões masculinos, em nada estamos contribuindo para fazer da Igreja espaço de vida. Esta continuará funcionando como “organização” ou “instituição” dominada pelos homens. A mulher precisa ser ela mesma. Precisa quebrar as grades de uma Igreja fortemente patriarcal que ainda a aprisiona, a limita, a enquadra dentro de padrões predeterminados. E alçar vôo. Ocupar espaço e agir com a dignidade de direito que lhe foi outorgada.
O culto mariano não foi promovido pela Igreja. Esta, vendo-se ameaçada pelo enorme poder que emanava de Maria tudo fez para ocultar e fomentar a depreciação da mulher. A marca negativa imputada à mulher atingia Maria...
Mas apesar disso Maria continuava a exercer seu fascínio e poder. Era adorada juntamente com o Filho. Por isso, o culto à Maria foi sendo estabelecido aos poucos, a partir das pressões populares, difíceis de serem contidas.
A partir do século IV, quando o cristianismo passou a ser a religião do império, houve a proibição de cultuar as deusas pagãs. O silêncio da Igreja em relação à Maria tornou-se intolerável para um povo acostumado a praticar seus rituais à deusa. Voltaram-se para Maria! O fascínio exercido por Maria se fortaleceu. Ela, Maria, é a Grande Mãe dos cristãos, a Grande Deusa Mãe!
No século V, a Igreja adota uma atitude política para que a fé em Cristo, apoiada no Pai não fosse ameaçada pela fé – cada vez mais crescente – em Maria: Maria é aceita no magistério Católico!
A Igreja, para que sua liderança não fosse abalada, abriu uma brecha e o culto à Maria pode se manifestar. Mas com uma condição: ela não podia ser objeto de adoração. Que se adorasse o Pai, o Filho e o Espírito Santo! Maria não era divina.
Ainda hoje alguns pregadores afirmam que Maria não pode ser adorada, mas somente venerada, porque não é divina. Porém, o dicionário nos diz que venerar e adorar são sinônimos. Querer medir, quantificar o valor, a força das palavras no coração humano é manipular conceitos, verdades...
Maria é adorada, venerada, ritualizada, cultuada sim! E de uma forma muito intensa, muito forte, muito presente. Dela procede uma grande força. É apelo às mulheres humilhadas, violentadas e feridas. É advogada, defensora do povo pobre, oprimido e explorado. É esperança. É refúgio. É portadora da alegria, do prazer. Protege. Acolhe. Defende. Caminha com seu povo. É Redentora. Dispensadora de graça. O criador do universo tomou forma humana no ventre de uma mulher, logo Maria é responsável por um acontecimento prodigioso: gerara o próprio Deus! Portanto, digna de ser adorada sim!
Todo o esforço para neutralizar o fascínio e o domínio exercidos por Maria foi em vão. E no final do século IV e início do século V Maria é nomeada Nossa Senhora. Igrejas foram consagradas à ela. Santuários foram construídos e dedicados à ela. Tornou-se patrona de Igrejas. A Senhora da Vida passa a ser a Nossa Senhora. E o povo a chamou de Nossa Senhora dos Prazeres, Nossa Senhora da Consolação, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora de Aparecida... Mãe da Humanidade, Mãe dos Aflitos, Mãe das pessoas que sofrem... Muitos foram os nomes dados à ela! Ela assumiu muitos rostos. Todos os rostos da humanidade! O rosto negro, o rosto índio, o rosto pobre, o rosto das mulheres sem rosto, o rosto das crianças de rua, o rosto dos desempregados/as, o rosto das mães que perdem seus filhos pra guerra do tráfico e da violência...
Para os povos antigos dar nome à algo ou alguém era o mesmo que dar existência, identidade e exercer poder sobre o outro. Ao ser nomeada Nossa Senhora, Maria teve sua existência atestada. Ganhou identidade de mulher, de mãe, de deusa!
Em Maria, nesta Maria, resgato minha identidade, saro minhas feridas. Nesta Maria, reconheço-me mulher, e faço minha as palavras de Maria Soave:
Amigo, sou da terra,
Nasci do útero da nação dos pinheiros araucárias.
Colo quente, terra de povo livre.
Terra da humanidade terna e fraterna.
Sou mulher-araucária
Mulher com raízes, profundas, olhos verdes.
Mulher-canto, mulher-encanto, vôo, sonho e utopia.
Mulher nó de pinho, teimosa, dura, resistente.
Amigo, sou de pão,
Do fogo aprendi a lição da dureza,
Do trigo a ternura e a doçura
E do pão a ser alimento do teu caminhar.
Deste eterno mudo mudar
Nasce a vida, jorra o sangue.
Sou de lua, de sonho e de desejo.
A minha noite é mais clara do que o dia
A minha escuridão é grávida de todas as alvoradas.
Amigo, nasci mulher. É suficiente.
Bibliografia
ALVES, Rubem. A Festa de Maria. Campinas: 2ªed. Papirus
BARROS, Maria Nazareth Alvim de. As Deusas, as bruxas e a Igreja. Rio de Janeiro, Ed. Rosa dos Tempos, 2001.
Dicionário de Teologia Feminista. Petrópolis: Vozes, 1997.
SANTISO, Maria Tereza P. A Mulher Espaço de Salvação. São Paulo: Paulinas.
Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1991
PEREIRA, Nancy Cardoso. Amantíssima e só. São Paulo: Olho D´Água, 1999.
SOAVE, Maria. Luas ...,Contos e encantos dos Evangelhos. São Paulo: Paulus, 2000.
______. A Amante, A Sábia, A Guerreira, A Feiticeira, São Leopoldo São Leopoldo: Centro de Estudos Bíblicos, 2002.
RUETHER, Rosemari R. Sexismo e Religião, São Leopoldo: Sinodal.
MURARO, Rose Marie. A Mulher no Terceiro Milênio, 3 ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, Rio de Janeiro.
REIMER, Ivoni Richter. O Belo, as Feras e o Novo Tempo, São Leopoldo/Petrópolis: CEBI/Vozes, 2002.
Ai, é de tirar o fôlego né?!....Sábias palavras, sábias palavras que vieram direto da roça do Paraná direto para nossos corações!!!
Bjks Coloridas
Chris
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